Produção inspirada no projeto Palafita & Arte transforma vida ribeirinha em poesia visual e será exibida em festivais nacionais e internacionais
Inspirado no projeto Palafita & Arte, criado e desenvolvido pelo Instituto Serra da Valéria, o curta-metragem “Luz da Serra”, segundo o idealizador do projeto e autor do roteiro, o artista plástico parintinense Freyzer Andrade, traz em sua proposta uma linguagem que transita entre a fronteira do documentário e a linguagem poética. Formato definido, de acordo com o artista, é essencial para registrar a vida na Amazônia, que, para ele, não se enquadra em categorias mais convencionais do universo cinematográfico, propondo uma linha que não impõe uma única narrativa.
O filme, que teve seu trailer lançado no dia 23 de agosto durante uma sessão especial para moradores-artistas da comunidade da Boca da Valéria, localizada no município de Parintins (distante a 369 quilômetros de Manaus), é, para Andrade, um ponto de partida de um novo momento das produções audiovisuais realizadas na Amazônia, pois, de acordo com ele, a produção não se passa apenas na floresta, mas nasce dela.
“Como artista e roteirista deste filme, vivi a experiência de transformar a noite cenográfica da Boca da Valéria em poesia visual. E tudo isso nasceu do projeto Palafita & Arte, que revitalizou pinturas artísticas de 38 casas ribeirinhas e cresceu para além das tintas e virou cinema, um cinema feito de verdade, de vida, de gente”, afirma Andrade.

(Fotos: Alcides Netto/Divulgação)
A ideia
O artista diz que, durante o período de execução e construção do projeto Palafita & Arte, uma “centelha” foi acesa e a ideia de transformar as paredes de madeira em telas vivas, onde a arte pudesse revelar identidades e memórias escondidas, nasceu.
“O cinema, então, surgiu como a expansão natural dessa linguagem. Decidimos filmar porque percebi que a poesia dessas comunidades não poderia permanecer restrita às palafitas pintadas, era preciso compartilhar essa experiência, não como registro etnográfico, mas como cinema-arte”, conta.
Vida na comunidade como matéria-prima
Para o roteirista, o envolvimento da comunidade ribeirinha com o processo de produção do filme também foi um diferencial à parte, já que não contou com um roteiro fechado e pré-estabelecido.
“Tudo foi muito orgânico. Chegamos com ouvidos e olhos abertos, conversamos, escutamos histórias, caminhamos pelas palafitas, partilhamos refeições. O filme se construiu como um diálogo constante: cada gesto, cada memória narrada por eles foi incorporada ao corpo da obra”, destaca, ressaltando que os moradores ofereceram sua própria vida como matéria-prima, com suas vozes, cantos, silêncios, modos de pescar, rezar e contar histórias.
“O cinema não os traduziu, o cinema se deixou levar por eles. A câmera captou não apenas imagens, mas presenças. O que se vê na tela não é uma encenação, mas um pacto entre produtor, roteirista e comunidade”, define Andrade.
Ainda sobre a participação da comunidade e sincronização do roteiro, o roteirista comenta que a produção também não teve um elenco ajustado, mas foi formado pelos próprios moradores da Boca da Valéria.
“Eles não 'atuam'. Eles simplesmente vivem diante da câmera. Essa escolha não foi estética, mas ética: só eles poderiam ser fiéis à sua própria experiência. A autenticidade nasce do corpo que vive o território e da voz que conhece a floresta como extensão de si”, diz.
Investimentos e participação em festivais
A produção, segundo Andrade, exigiu mais do que recursos financeiros ou investimentos em logística, equipamentos e equipe técnica; exigiu tempo, escuta e confiança.
“Claro, houve investimento, mas o verdadeiro capital foi humano e afetivo. Parcerias institucionais, como com a Parintins Filmes e a Nexus Filmes, suporte das imagens aéreas com o diretor e filmmaker Alcides Netto, suporte, logística e financeira através do Konduri Lodge, que está localizado na região da Serra da Valéria, foram fundamentais para dar estrutura cinematográfica ao projeto. Mas também houve alianças com a própria comunidade, sem as quais o filme não existiria”, justifica.
Quanto ao futuro de novas produções, o presidente do Instituto Serra da Valéria diz que novas frentes no cenário audiovisual e artístico estão sendo preparadas.
“Oficinas audiovisuais para jovens ribeirinhos, residências artísticas na comunidade e um acervo digital de memórias locais. ‘Luz da Serra’ não é um ponto final, é o prólogo de um movimento cultural contínuo”, garante.
O objetivo, ainda de acordo com Freyzer Andrade, é realizar o lançamento oficial do curta na segunda quinzena do mês de setembro na própria comunidade Boca da Valéria para depois seguir para exibição em festivais nacionais, internacionais, universidades, cineclubes e espaços culturais.
“Não faria sentido que o primeiro olhar não fosse o dos donos das histórias. Será uma noite em que a comunidade verá sua imagem refletida na tela, como protagonista. Queremos que o cinema que nasce na beira do rio alcance os grandes e importantes locais para a exibição”, finaliza.
“O que se vê na tela não é uma encenação, mas um pacto entre produtor, roteirista e comunidade.”— Freyzer Andrade, autor do roteiro e artista plástico parintinense
Beleza estética, espiritual e simbólica
Para Freyzer Andrade, o maior objetivo da produção de “Luz da Serra” é iluminar o invisível.
“O filme nasce como um farol capaz de revelar ao mundo a beleza estética, espiritual e simbólica das comunidades tradicionais ribeirinhas. Ao mesmo tempo, funciona como um espelho para os próprios moradores, reforçando neles o sentimento de orgulho e pertencimento. Valorizamos a arte local não como ornamento, mas como eixo central.”
A ideia de “Luz da Serra” não reside apenas no roteiro, mas na presença viva de quem compõe o filme. Os moradores da Boca da Valéria, ao compartilharem suas histórias, não interpretam papéis, mas expõem camadas de sua própria existência. O gesto simples de uma fala, o olhar que atravessa a câmera, o silêncio carregado de memórias: tudo isso comunica verdades impossíveis de serem roteirizadas.
Fotos: Alcides Netto/Divulgação)
Por: Marcelo Guilherme – Especial para A CRÍTICA