A resolução aprovada pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que retira a obrigatoriedade de aulas em autoescolas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), gerou grande repercussão entre os proprietários de Centros de Formação de Condutores (CFCs) de Manaus. A decisão, anunciada na segunda-feira (1º), promete reduzir em até 80% o custo do documento, mas é vista com preocupação por empresários do setor e especialistas ouvidos por A CRÍTICA.
A mudança, proposta pelo Ministério dos Transportes e aprovada por unanimidade pelo Contran, entra em vigor assim que for publicada no Diário Oficial da União. O texto prevê maior flexibilidade na preparação do candidato e a possibilidade de estudar por conta própria, realizar curso teórico gratuito e digital, contratar instrutores autônomos credenciados ou ainda recorrer às autoescolas, que deixam de ser obrigatórias. Além disso, o modelo reduz a carga mínima de aulas práticas de 20 horas para apenas duas.
Para o diretor-geral de uma autoescola de Manaus, Jeison Taveira, a decisão do Contran é considerada precipitada, já que, segundo ele, uma comissão especial da Câmara dos Deputados já discutia o tema da formação de condutores. Ele afirma que a medida “afronta” o debate legislativo em andamento e acredita que a resolução precisa ser judicializada e revogada assim que for publicada no Diário Oficial.
Segundo Taveira, as novas regras podem comprometer a qualidade dos novos condutores e aumentar riscos no trânsito. Ele compara o processo à formação de pilotos de avião, que exige horas práticas e conhecimento técnico rigoroso.
“Você imagina uma pessoa achar que tem noção suficiente para pilotar e decidir fazer tudo por conta própria. Ela reprova, gasta mais dinheiro e ainda coloca vidas em risco. No trânsito é a mesma coisa. A autoescola não ensina só para a prova. Muita coisa importante é repassada ali. O trânsito pode ficar ainda mais caótico, porque a cultura do brasileiro é buscar facilidades”, disse.
Taveira discorda também do argumento de que o processo ficará mais barato. Ele afirma que, no Amazonas, a categoria A (motocicletas) B (veículos de passeio) custa cerca de R$ 2,6 mil, e que quase R$ 900 desse valor corresponde a taxas obrigatórias que o Estado continuará cobrando, segundo ele, como exame médico, primeira habilitação e Licença de Aprendizagem de Direção Veicular (LADV).
Jeison também detalhou os custos para se ter uma autoescola em funcionamento, entre eles o pagamento de instrutores, combustível, manutenção de frota, aluguel, impostos e alvarás. Ele conta que o setor já registra queda na procura desde que o governo anunciou a intenção de alterar as regras. “Estamos há três meses no vermelho. Hoje, o que garante o lucro é a rotatividade, e isso acabou”, disse.
Outro proprietário de uma autoescola de Manaus, Marcílio Mendonça, também criticou a resolução aprovada pelo Contran. Ele acredita que a medida tem caráter “eleitoreiro” e pode trazer prejuízos à segurança no trânsito ao reduzir a carga horária prática.
“O que não pode é alguém sem experiência achar que, com duas horas de aula, um aluno vai sair dirigindo. Hoje são 20 horas obrigatórias e muitos ainda assim têm dificuldade de passar”, destacou.
Marcílio, assim como Jeison, também relatou dificuldades financeiras diante da queda na procura. Ele afirma manter custos elevados para manter a autoescola funcionando, como aluguel de R$ 7 mil, conta de energia de R$ 1,5 mil e folha salarial acima de R$ 40 mil por mês.
“O prejuízo já é muito grande. O aluno acredita nas promessas do governo e para de procurar autoescola. Se tudo isso realmente acontecer, eu pretendo mudar de ramo, porque o custo para manter uma escola aberta é muito alto”, disse.
Especialista alerta para retrocesso da segurança no trânsito
Segundo avaliação do especialista em trânsito Manoel Paiva, a decisão do Contran pode ser um “passo atrás” para o Brasil no enfrentamento aos acidentes de trânsito. Ele afirma que a mudança tem apelo econômico, o que é legítimo, mas ignora a realidade estrutural e cultural do país, que vive hoje um cenário de perda de controle sobre a mobilidade urbana, principalmente nas capitais, entre elas Manaus.
Paiva explica que cada vez mais as pessoas estão abandonando o transporte coletivo pela má qualidade do serviço e migrando para o transporte individual, principalmente motocicletas e aplicativos. “Isso aumentou a demanda por habilitação e pressionou o sistema. Só que, em vez de ampliar vagas, qualificação e fiscalização, o país resolveu simplificar o processo”, disse.
Paiva também criticou a perda do papel fiscalizador e educativo dos órgãos estaduais de trânsito ao longo dos anos. Ele explica que a nova medida pode facilitar o acesso à CNH para milhões de pessoas, mas sem contrapartidas de segurança. Segundo o especialista, a medida deveria vir acompanhada de ações estruturais.
“Isso não pode ser visto só como uma questão financeira. A segurança viária depende de infraestrutura, sinalização, fiscalização e educação. Não existe consciência coletiva sem fiscalização. O governo poderia articular parcerias para levar formação de qualidade ao interior, criar escolas públicas de trânsito nos municípios, treinar mototaxistas, entregadores e novos condutores. Sem isso, estamos caminhando na direção contrária ao que o mundo busca: reduzir mortes. Aqui, parece que queremos apenas reduzir custos”, avaliou Paiva.
O especialista em trânsito citou ainda números recentes da violência no trânsito especificamente em Manaus para exemplificar o risco. Para Manoel, a resolução aprovada é uma medida que favorece o acesso a milhões de pessoas que precisam da habilitação para trabalhar, mas que fragiliza a segurança para esses mesmos trabalhadores.
“Manaus registrou 309 mortes no trânsito no ano passado, o maior número dos últimos 25 anos. Só até o dia 2 deste mês já são 222 mortes. E ainda há subnotificação, porque muitos casos atendidos na rede privada nem entram nas estatísticas oficiais”, destacou.
Por outro lado, o Ministério dos Transportes afirmou que a reformulação das regras para a obtenção da CNH “moderniza o sistema e amplia o acesso ao documento”. O ministro da pasta, Renan Filho, defendeu que a medida segue modelos adotados nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, onde o foco é a avaliação e não a quantidade de aulas.
(Foto: Reprodução)
Fonte: Amariles Gama/acritica.com